O que o ciclismo tem a ver com homofobia?
Essa pergunta me foi feita por um ciclista cis masculino, quando postei uma imagem de uma bicicleta e as cores do arco-iris, no grupo virtual sobre ciclismo, em que fazia alusão ao dia Internacional de Luta contra Homofobia.
Imediatamente respondi: tudo, a bicicleta é diversidade. A necessidade da resposta me fez refletir o quanto essa diversidade ainda não é aceita mesmo entre os ciclistas e como a homofobia no ciclismo ainda é uma constante.
Dia Internacional Contra a Homofobia
Nessa segunda-feira (17), foi comemorado o Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. Em 1990, nesta data, a homossexualidade foi excluída da classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Quero esclarecer que escrevo na perspectiva da homofobia. Um tema que já tenho vários episódios vividos. Sendo um deles, o ciclista perguntar se eu não tinha uma bicicleta de “homem”. Transfobia e bifobia são recortes mais profundos ainda e que renderão outro artigo.
Bicicleta para apoiar a comunidade LGBTQ+
Quando a Caloi lançou uma bicicleta em 2020 com as cores do arco-íris, a Caloi Rainbow, cuja venda seria revertida para manter uma casa de apoio a público LGBTQ+ na capital paulista, li todo tipo de comentário nas redes que refletiram um pouco da homofobia no ciclismo. Em um vídeo produzido por um homem cis, supostamente hétero, em que ele se diz indignado com a marca por ter lançado uma bike em apoio a causa lgbt, dois comentários de seguidores resumiram a sua mentalidade:
“Esse negócio de cota minoritária é o maior câncer de todos. Hoje em dia todo tipo de mídia possível tem que ter algum gay no meio”. “A maioria dos clientes são homens, r.i.p Caloi”.
O paradoxal é que parte de ambas as frases estão corretas em suas constatações: 1. LGBTQ+ estão em todos os lugares, ainda que escondidos. 2. O ciclismo é majoritariamente masculino.
Atleta belga, o ciclista Justin Laevens desabafou
Sendo o ciclismo um esporte no Brasil praticado quase que exclusivamente por um gênero, já é o primeiro indício que algo está errado. A homofobia no ciclismo é tão séria que ainda hoje em 2021, a modalidade recebe, com espanto, a declaração do atleta belga, o ciclista Justin Laevens, se assumindo como gay. Leavens é um dos primeiros ciclistas profissionais masculinos, da história do esporte, a se declararem abertamente gays, ou seja, “sair do armário”. Além dele, Graeme Obree, Corey Walsh e Matt Beringer também se assumiram gays. ” Precisava?”, muitos internautas perguntaram.
Em entrevista ao Outsports ele declarou: “Sim. Já fazia dois anos que pensava nisso. Foi um grande passo. Meus pais foram muito positivos sobre isso. Eu estava especialmente com medo das reações de ciclistas ou equipes maiores, de que eles olhassem para mim de forma diferente, mas não acho que seja esse o caso. ” declarou. Em seu anúncio, Laevens reconheceu que não conhece nenhum outro ciclista ativo abertamente gay. “Não tive dificuldade para me expressar, mas sim no esporte, porque não conheço nenhum [ciclista] que seja gay”, finalizou na entrevista.
Graeme Obree, bicampeão mundial e recordista admitiu, em uma entrevista ao jornal Scottish Sun que a ansiedade associada para esconder o fato de ser gay, enquanto competia na liga profissional, levou a duas tentativas separadas de tirar sua própria vida.
Mens sana in corpore sano?
Sim. O esporte é um dos setores com maior número de registro de casos de homofobia reproduzidos de dirigentes, a conselheiros, atletas e passando por torcidas. Ainda que as coisas estejam mudando com clubes fazendo campanhas abertas contra essa discriminação, dentre outras, o setor acumula casos de atletas afetados pelo medo de perder patrocínio e reações homofóbicas ao se declararem LGBTQ+. “Falar sobre homossexualidade (no esporte) ainda é um grande tabu. As pessoas têm muito preconceito implantado nelas”, declarou o atleta olímpico Diego Hypolito ao Globoesporte.
O que dizer então do meio amador?
Não há dados sobre o público lgbt na bicicleta no Brasil. Mas dá para perceber que são menos ainda que as mulheres, que representam menos de 7% entre os ciclistas brasileiros (UCB). Quando se faz o recorte trans a situação é pior ainda.
“Quando organizamos o festival 100gurias 100medo no Rio, em 2018, um rapaz trans fez contato querendo saber se seria bem vindo. Isso gerou um debate enorme no grupo da organização e decidimos que precisávamos fazer uma mesa de debate sobre o tema no evento. Ele foi ao Rio e fizemos uma roda de conversa com ele e outro rapaz trans. Foi excelente. O relato dele é que não era aceito por grupos de pedal masculinos ou femininos” declarou Ana Carboni, presidenta da UCB (União de Ciclistas do Brasil) . Ela completa que, à frente da entidade há pouco mais de ano e meio, está levantando e revisando cadastros dos ciclistas associados e incluindo questões de gênero, raça e sexualidade como parte dos dados importantes da Associação.
Relatos de Homofobia no Ciclismo
Se os dados específicos sobre esse tipo de ciclista são poucos, os relatos que recebi de ciclistas lgbt mostram que a dificuldade em pedalar em grupos e conviver são diversos.
“Eu parei de andar em grupos de ciclistas masculinos depois de discutir com alguns sobre piadas homofóbicas e indiretas a mim. Quero pedalar e não passar raiva. Hoje prefiro os rolês sozinho”, declarou F. A. 33 anos.
“Eu pedalo em vários grupos e alguns são mais homofóbicos que outros. No geral sou sempre o único lgbt no pedal” R. 44 anos.
“Mesmo no movimento ciclístico alguns não entendem que gays também pedalam. Então eu vejo que, além da luta pelo direito de ocupar a via e ser respeitados, temos que nos fazer visíveis”. P. 35 anos.
“Queria pedalar em grupo mas quando ouço os relatos dos amigos lgbts que tentaram fico desanimado”. S, 27 anos.
“Temos um grupo de amigos lgbts e pedalamos juntos. Foi a solução que encontramos para pedalar sem homofobia e poder conversar qualquer tema sem discriminação”. R. A 32.
Dados sobre mortes por homofobia no Brasil
O Brasil ainda é o país que mais mata LGBTs do mundo. De acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2019, foram registrados no país 329 mortes violentas, sendo 297 homicídios e 32 suicídios. Em 2018, foram registrados 420 casos e em 2017, 445 mortes.
Voltando à pergunta inicial. O que o ciclismo tem a ver com homofobia? Se a bicicleta é diversa, porque os ciclistas também não o são? Fica a reflexão.
O Lobi Ciclotur entende que para ser considerado um ciclista no sentido literal da palavra, o indivíduo deve ser educado, respeitar o próximo e o princípio da irmandade. Assim sendo, somos solidários a inclusão, não cabendo em hipótese alguma o preconceito, o racismo e a discriminação.
Edição e produção: Ivan Mendes © Lobi Ciclotur | Texto: Gil Sotero