Rememorando algumas páginas da minha vida recente, e percebendo que este momento em que vivemos está sendo um tempo para ser mais do que ter, para refletir sobre o que somos e fazemos, acedi às linhas tortas que escrevi anos atrás, e é bem possível que elas sejam mais atuais do que jamais foram.
Era o ano de 2007 quando, em um trabalho acadêmico no Curso de Turismo da Universidade de Uberaba, cheguei a propor, enquanto docente da área, que Ciclocidadania seria uma:
Foto: Ivan Mendes |
“Experiência de humanização do cotidiano no contexto das cidades, em forma de ação socioeducativa pró-mobilidade humana, cujo engajamento deste movimento social extrapole as obrigações e direitos formais, e resulte concretamente em empreendimentos de defesa da vida e de um futuro possíveis, tendo a bicicleta como meio de intervenção prioritário”.
A bicicleta foi o meio de intervenção escolhido àquela época, para concretizar tal experiência, ainda que fosse, particularmente, através de meu projeto Professor Sobre Rodas. Havia que tentar colocar em uma só palavra o conjunto de expectativas próprias que começavam a dar sinais de resultados, até então, não esperados.
Como todo o conceito, o tempo e o uso trouxeram aprofundamentos e derivações.
Mais personagens da mobilidade humana pelo país, como o saudoso Glauston Pinheiro, o Wesley Moura, a Simone Mamede, o Marcório Martins, o Phillip James, o Leandro Karam, o William Mendes, o Athaíde Júnior, enfim, passaram a fazer uso do conceito a fim de explicar algumas formas mais complexas de atuação que superavam as expectativas morais de nossos papéis sociais.
Queria-se a ampliação do conceito de cidadania, para além do exercício dos direitos e deveres, civis e políticos, diante do Estado ou da Constituição. Fazia falta engajamento livre, para longe da mera obrigação moral. E entendíamos que tal interpretação, ainda que pessoal e particular diante do ser cidadão, carecia de renovação. Por este motivo, adotamos a palavra ‘ciclo’.
Talvez, se olhasse por outro viés, haveria de ter adotado a desgastada palavra ‘eco’.
Por admitir, pessoalmente, que a educação não se restrinja a meios institucionalmente escolares, entendo que a Ciclocidadania seja uma ação socioeducativa emancipadora, que gera liberdades.
A ação de educar é uma escolha que supera ou transcende as quatro paredes das instituições de ensino e pode estar presente em diálogos online, em eventos culturais, em ocupações do espaço público pacíficas, em vídeos, em mostras fotográficas, em literatura, em pedaladas pelas cidades e espaços rurais, e por aí vai.
Sendo assim, compreendemos que o conceito seja aplicável.
A Ciclocidadania, por ser uma livre escolha reflexiva sobre a realidade (ética) enaltece os valores humanos porque assim quer a cidade para pessoas.
Foto: Ivan Mendes |
Ela é uma ação consciente de quem quer a mudança, então, começa por mudar a si próprio antes de esperar que as transformações surjam à revelia de si.
Inúmeros são os grupos de ciclistas pelo Brasil adentro que se esmeram em promover transformações nas cidades que beneficiem a todos, sem exceção.
Seria fácil citá-los às centenas, mesmo que desconheçam tal fato.
Agir com Ciclocidadania, por exemplo, é ter em mente que a natureza é um bem que pertence a todos; levar em consideração que os impactos da presença humana no ambiente devem ser aqueles cujos resultados não comprometam a vida qualitativa das gerações futuras.
Por este motivo, a bicicleta é o veículo da ciclocidadania e da sustentabilidade.
Toda ação ciclocidadã pressupõe o engajamento comunitário com fins de gerar condições amplas e plenas para todos, tendo como objetivo prioritário aqueles sujeitos para quem as escolhas foram limitadas, pela força, pelo poder ou pela injustiça social.
O conceito proposto indica ainda que ao valer-se da bicicleta como veículo não violento, todo o cidadão (e cidadã) escolhe a maneira de ser protagonista da cidade que constrói cotidianamente. Encontra, também, uma forma concreta de atuar individualmente gerando impactos e resultados positivos plurais, que atingirão uma escala que nem sequer se tem plena noção.
Foto: Ivan Mendes |
Nosso conceito de Ciclocidadania remete à experiência de “com-vivência” excetuando a mera abordagem de “sobrevivência” nas cidades.
Aponta para a construção coletiva de uma realidade possível de ressignificação das ruas e, por consequência, dos coletivos humanos que as tomam, sejam pedestres, ciclistas, skatistas, patinadores, prestadores de serviço de coleta e de entrega, carroceiros, catadores, recicladores (burros sem rabo), etc.
Enquanto comportamento, a Ciclocidadania é a adoção de uma postura de vigília ante à globalização insidiosa e excludente no tecido da cidade, se opondo à gentrificação, ao higienismo social, à apatia diante da violência urbana, bem como em oposição à hegemonia do veículo automotor frente ao pedestre e ao ciclista.
A Ciclocidadania é um resgate do plural e da alteridade em um mundo engessado de individualismos.
Seguiremos pedalando, porque sim, buscando ser ciclocidadão em cada olhar, ação e pensamento.
Quer vir junto?
Por Therbio Felipe M. Cezar