Circuito Cascatas e Montanhas de Cicloturismo: autêntica hospitalidade em cenários de sonho.
1, 2, 3 … Sim, 123 km de pura simplicidade e diversão em meio às altitudes gaúchas aguardam cicloturistas para uma experiência de hospitalidade, contemplando as belezas naturais e culturais dos municípios de Rolante, Riozinho e São Francisco de Paula, no estado do Rio Grande do Sul, junto ao Vale do Paranhana. Vale salientar que não se trata de “mais um circuito de cicloturismo”, e sim de um interessante traçado por entre estradas rurais entrecortadas por veios d’água, os quais resultam na exuberância de um sem número de cachoeiras de tirar o fôlego à escolha dos sorrisos incrédulos e surpresos dos ciclonavegantes.
Foto: Therbio Felipe |
Mais que tudo, o Circuito Cascatas e Montanhas é a melhor e mais harmônica proposta de fixação digna de famílias no campo nesta região, contendo potenciais socioeconômicos únicos e cenários de futuro próspero que são um convite voltado aos jovens deste entorno. Mas, e o circuito, é difícil?
Difícil mesmo é querer ir embora de lá.
Quando cito, à introdução, a hospitalidade presente neste circuito, quero remeter àquela sensação única de benquerença que se estabelece entre desconhecidos, regada de cuidados e acolhimento, que faz com que o visitante não queira ir-se. Assim é a experiência promovida pelos personagens impressos na paisagem destes lugares.
Embora não tenha completado 3 anos de lançamento, o Circuito Cascatas e Montanhas de Cicloturismo segue parâmetros comuns a outros circuitos no que tange à organização do traçado, sinalização, oferta de atrativos naturais e culturais, passaporte e certificado, entre outros aspectos. A pedalada pode ter início em qualquer uma das três cidades envolvidas contemplando as quatro etapas que compõem a rota.
Foto: Therbio Felipe |
Fomos convidados pela AMICAM (Associação dos Amigos do Circuito Cascatas e Montanhas) nas pessoas da Adriane Minetto, Juliano Trindade, Giancarlo Settin Wingert e do Dirceu Luciano Homem, a perfazer o circuito no início do mês de abril e tomamos Rolante como o ponto de partida escolhido.
Ainda na cidade, antes de seguir pedalando, percebe-se que os ciclistas locais estão envolvidos em negócios e serviços de sustentação do circuito, seja na área de hospedagem e alimentação ou na logística necessária para dar suporte mais completo ao cicloturista, ainda que o percurso seja autoguiado.
Note-se: Rolante é uma cidade de ciclistas, principalmente de MTB, e nomes notáveis estão por toda a parte. E não é por acaso.
Na primeira noite na cidade, ficamos hospedados na Pousada Rolantchê, um pouco afastada do centro da cidade, porém, contando com um atendimento bastante cuidadoso da Rosângela Tadler. Quem passa pela RS-239 não faz ideia que ali há uma hospedagem bike friendly onde a magrela pode ficar no quarto.
Iniciamos o pedal na manhã seguinte a partir da Casa da Colônia, ali junto à rua coberta, no centro da cidade, onde se recebe o passaporte que será carimbado a cada nova etapa do circuito. Neste espaço, é fácil perceber in loco motivos mais do que suficientes para que Rolante seja conhecida como a Capital Nacional da Cuca, um pão de massa leve e aerada, com coberturas que podem variar desde Schmier (ou chimia) de frutas regionais a chocolate. Uma iguaria sem precedentes!
Senhoras da comunidade se entregam ao delicado ofício de produzir as deliciosas cucas, mantendo viva a cultura dos imigrantes europeus, ao criar e recriar receitas dedicadas a acompanhar o chimarrão ou a fim de encantar as mesas fartas dos cafés da manhã e da tarde, coisa mais do que comum nestes rincões.
Parada obrigatória para os cicloturistas que seguirão em direção a Riozinho é fazer um pit stop no Haag Haag Bike Café, da ciclista e atleta Nádia Haag. Além da oferta de uma infinidade de opções de alimentação e bebidas (inclusive aquele açaí), banheiro limpo e Wi-fi, vale guardar um tempo para uma animada conversa com a proprietária, apaixonada por ciclismo e que, embora empreenda uma rotina bastante exigente e intensa em seu negócio, não deixa de sair a pedalar nos horários que sobram. Um exemplo a ser seguido por outros empreendedores da cidade.
Durante todo o caminho pedalando, tive a companhia de meus amigos Giancarlo, Adriane e Juliano, e contamos com o especial acompanhamento do Dirceu no carro de apoio, todos eles ciclistas envolvidos apaixonada e incansavelmente com a organização do circuito. Com toda a paciência do mundo, fizeram questão de compartilhar comigo dos três dias de pedalada, informando sobre cada detalhe do roteiro. Passamos pelas localidades de Rolantinho e Alto Rolantinho até chegar à Colônia Monge, onde a Cascata que leva o mesmo nome espera os visitantes para momentos de extrema contemplação.
Foto: Therbio Felipe |
Um detalhe importante a ser considerado: os principais atrativos naturais deste circuito estão a poucos passos da estrada, não oferecendo dificuldade maior para acessá-los.
A visão da Cascata da Colônia Monge, diante de uma piscina natural transparente e de um balanço feito com pneu de carro pendente, fez com que as imagens e memórias da infância retornassem de imediato, determinando a vontade de ali ficar por horas a fio. O Cicloturismo é uma atividade onde a pressa jamais deveria ser considerada e onde vale o trocadilho: a pressa não é só inimiga da perfeição, mas também da experiência.
Inspirados pela visão telúrica, seguimos em direção a Riozinho, mas antes tivemos que considerar a famosa subida do Canta Galo, o primeiro dos desafios do circuito, chegando a uma elevação de 680m, tendo partido de Rolante que está a trinta e poucos metros de altitude. Aos poucos, os aclives vão se mostrando e permitindo vislumbrar vales e picos numa alternância que não cansa a vista, ao contrário.
A rápida descida que se segue nem faz notar a chegada da segunda cidade do circuito, a bela e bem cuidada Riozinho, onde o Restaurante Breier faz por onde renovar as forças oferecendo atendimento cordial e um buffet variado e de qualidade, e melhor, com preço em conta. É claro, depois de degustar polenta, lasanha e outras delícias da cozinha regional, sugerimos um merecido descanso à sombra ou uma breve caminhada pela cidade.
Ao sair do centro de Riozinho em direção à localidade de Chuvisqueiro, um pequeno trecho de aclive em asfalto, que logo dá lugar ao que chamamos ironicamente de Serra do “Riozinho” do Rastro, uma brincadeira alusiva à estrada emblemática catarinense, devido ao ziguezague do traçado com desenho semelhante. Trata-se de uma subida aguda de terra em curvas de cotovelo chegando a 560m, a fim de acessar o Sítio Amborella onde se deu a hospedagem daquele dia.
Falando nele, o Sítio Amborella está localizado em Riozinho, alguns metros acima da queda mais impressionante (ao meu ver) da região, a Cascata do Chuvisqueiro. Aliás, diga-se de passagem, são oito as cascatas próximas ao sítio.
Na propriedade, a hospedagem no chalé mistura rusticidade, bom gosto e conforto, além da hospitalidade generosa da Adriane e do Juliano. Banho de rio, guiamento de bike ou trekking são atividades que se pode contar no lugar, além da estrutura que inclui Tv por assinatura, Wi-fi, cozinha completa, lareira, banheiro privativo e roupa de cama impecável nos chalés.
Ah, vale citar o galpão nativo onde são servidas as refeições, local mais do que especial para conversas sem pressa e um bom e fraterno chimarrear. E algo de pitoresco que não se pode deixar de experimentar é um gênero de remédio local, preparado pelo Juliano Trindade, que cura qualquer tipo de enfermidade, mas que tem que ser apreciado lá no Amborella, um tal de limão-bergamota do Chuvisqueiro. A receita é secreta e os resultados são consideravelmente notáveis, merecendo um estudo científico a respeito (risos).
No segundo dia de pedal, a poucos metros do Sítio Amborella, uma parada obrigatória para acessar a parte de cima da Cascata do Chuvisqueiro. A breve trilha é segura e acede a uma “janela” junto ao precipício, para onde o Rio Chuvisqueirinho, um dos afluentes do Rio dos Sinos, despenca para formar a beleza única avistada lá debaixo. Um local incrível com algumas piscinas naturais, mas que merece cuidado redobrado para que a diversão seja ainda mais segura.
A descida pela estrada de terra até a parte de baixo da Cascata do Chuvisqueiro é curta. Junto à portaria do camping onde o atrativo está, o ingresso para ciclistas custa em torno de R$ 4,00. São poucos metros que separam o visitante da impressionante vista dos quase 80m de queda formando uma piscina a seus pés. Os adjetivos conhecidos são injustos para falar sobre este lugar. Além do banho nas águas límpidas, porém, geladas, o cicloturista tem a opção de passar bons momentos em diletante contemplação. É, sem dúvida, um dos mais apaixonantes cenários do Circuito Cascatas e Montanhas. Por favor, cuidem deste patrimônio.
Foto: Therbio Felipe |
Há poucos metros dali, acessa-se a Cascata do Chuvisqueirinho ou Três Quedas, em uma propriedade muito bem mantida que também oferece espaço para campismo.
Seguimos a Estrada do Chuvisqueiro, sentido a localidade da Mascarada, e tivemos uma grata surpresa. Ao bordo da estrada, espera o cicloturista a Tenda da “Baike”, isto mesmo, um espaço bike friendly mantido pelo Seu Clari e Dona Jacheline Silva, onde não é difícil degustar cucas, queijos e salames feitos por eles. Além de tudo, que espetáculo presenciar o discernimento que este casal tem do que seja empreender no meio rural e seu entendimento sobre a manutenção da identidade cultural regional e, ainda, sobre o universo do cicloturismo. Parada obrigatória!
Depois do banho de gentilezas da Tenda da “Baike”, a próxima parada é, novamente em Rolante, a Cascata das Andorinhas, logo depois de atravessar a barragem. O acesso está um pouco mais distante da estrada, menos de 1,5km, porém, o cicloturista nem sequer imagina a visão que terá logo em seguida. A Cascata das Andorinhas surge em meio a uma chanfradura de rocha, como uma caverna, e ainda que tenha menos de 20m de altura, cria mais um dos incríveis cenários deste circuito. Não há como realizar uma visitação breve, porque a sensação de paz naquele sítio é algo incompreensível. É preciso parar, ficar e olhar, e continuar olhando. Também não é à toa que esta cascata está presente em nove entre dez dos melhores blogs de fotografia de aventura do país.
Após este encontro, prepare-se para subir o Varzedo. Aliás, prepare-se mesmo! Este trecho que leva até a linda comunidade de Boa Esperança é composto de uma subida íngreme e contínua. Brincamos entre nós dizendo que “a boa esperança é a última que sobe”, um trocadilho com o ditado conhecido. Indicamos estudar a rota antes caso o cicloturista esteja carregando alforjes, o que tornará ainda mais difícil o aclive, tendo em vista que o abundante cascalho solto da estrada complica o perrengue. Nas descidas deste trecho, por favor, cuidado redobrado, pois o mesmo cascalho solto tende a desequilibrar ou afundar a roda dianteira, ou seja, não vale a pena estragar a cicloviagem por imprudência.
Passado o Varzedo, entra-se no Caminho das Pipas, no quarto distrito de Rolante, denominado Boa Esperança, um pitoresco conjunto de vinícolas, cantinas e pousadas em meio a uma comunidade de cultura italiana, contendo dezenas de famílias dedicadas à vitivinicultura e à vinificação. A parada que fizemos nos Vinhos Finger proporcionou, além da degustação de queijos, pães e salame regados a suco de uva e vinho, uma interessante conversa com os gestores Andrei e Sheila Finger, jovens capacitados que fizeram uma acertada escolha de permanecer no meio rural e dar sequência à história de suas famílias.
À noite, o descanso foi garantido pela hospitalidade da família Montemezzo, quando nos hospedamos na Pousada In Mezzo Ai Monti, na mesma comunidade. Quartos amplos com camas confortabilíssimas e banheiros completos fazem da estada neste espaço um presente. Ao acordar, outro presente que se recebe é a calmaria e o aroma de café passado que vem do salão do café da manhã. Lá, toda a experiência e dedicação da Janice Montemezzo e família faz toda a diferença ao começo do dia. Degustar com parcimônia será o melhor elogio à mesa. Mais um lugar do qual é difícil partir.
Ainda em Boa Esperança, a opção para o almoço no final de semana é a Cantina Figueira Branca, do Seu Lírio Dalacqua. Reserve com antecedência pois o lugar é bastante concorrido, justamente pela boa cozinha regional e pela vista da Paróquia Nossa Senhora do Caravaggio.
Próximo a esta comunidade se encontra mais um dos pontos turísticos emblemáticos: o Morro Grande, com 841m de altitude. A vista dispensa comentários e a estrutura está muito bem mantida, limpa e organizada, oferecendo mirante, churrasqueiras ao ar livre, área para camping e, ainda, duas rampas de voo livre.
Seguindo pela localidade de Caconde chega-se a São Francisco de Paula, terceira cidade do circuito. Ao chegar, o primeiro lanche foi no Xis da Dona Laura, bem no centro da cidade, opção completa de alimentação e bom gosto.
Passando pelo Lago São Bernardo (bonito espaço de lazer urbano de onde se tem uma vista noturna impressionante do Hotel Cavalinho Branco), chegamos à Pousada Sítio Águas da Rainha, do Ronaldo Maciel.
O sítio é um espaço de contato íntimo com a natureza e um convite à reflexão e descanso. Conta com um galpão campeiro bem montado e mais oito chalés de muito bom gosto, incluindo churrasqueira, lareira, banheiro amplo e moderno, mezanino e cozinha completa. Além da área de hospedagem, há uma extensa área natural com vistas memoráveis, basta escolher. Ronaldo também mantém produção de leite, queijos e manteiga de excelente qualidade e que podem ser degustados ao início do dia, pois constam da cesta de café da manhã que os hóspedes recebem em cada chalé.
A parte final de nosso pedal foi, praticamente, só descida. Mais uma vez, destaco o cuidado com o cascalho solto (calma, não comprei terreno). Já na localidade de Samambaia, mais uma grata surpresa que o circuito reserva. Ao passar por uma placa indicando uma agroindústria que produz suco de uva, resolvemos parar e pedir para visitar. O que se seguiu foi de dar nó na garganta de qualquer brutamontes como eu. Ilgo e Telma Roesler estavam com os familiares sentados ao jardim da propriedade, terminando uma reunião. Ao ver-nos, Ilgo disse um simples “chega” e abriu os braços, sinalizando que éramos extremamente bem-vindos.
Àquela altura, a propriedade deles ainda não fazia parte dos empreendimentos pertencentes ao circuito, porém, tenho certeza de que esta ausência durará muito pouco. Aqueles senhores de olhos claros e gentis nos serviram um suco de uva primoroso, sem nada de acidez, e ampliaram ainda mais nossa mera noção de hospitalidade. Ilgo e Telma nos provaram o real sentido da expressão que uso, recorrentemente, “xenophylus”, ou seja, “amor ao estranho”. É muito fácil e seguro amar quem se conhece, gostar de quem lhe é próximo. Difícil mesmo, ainda mais nestes tempos, é dedicar cuidado, atenção, abraços e sorrisos a totais estranhos que chegam à porteira de sua casa, em bicicleta, suados, sujos e extenuados. Impressiona, até agora, enquanto escrevo estas linhas, a marcante sensação de ‘família’ experimentada por nós.
Não mais que meia hora durou nossa visita, mas bastou. Carregados de sentimento fraterno, havia que seguir.
Ao despedir-nos com dificuldade comum neste circuito, a emoção vinha aos olhos de todos, e a sensação de precisar voltar é uma obrigação que não nos sai da mente e do coração. Obrigado, família Roesler, pelo grande presente que levamos conosco, para sempre.
Foto: Therbio Felipe |
Seguimos sentido localidade de Ilha Nova, tomando cuidado nas descidas, e chegamos à comunidade de Campinas, fazendo parada no Camping Wolf, onde o Diego, o Thiago e seus pais, nos esperavam para um espetacular almoço regional, com churrasco, é claro. O camping ainda conta com duas cascatas dentro da propriedade e toda a estrutura de serviços bike friendly. A alegria e competência com que a família recebe é entusiasmante. Esta foi a forma de fechar com chave de ouro nossa passagem pelo circuito. Parabéns a todos.
Como forma de agradecer por tudo o que recebi, ofereci uma breve palestra para a comunidade sobre os benefícios do cicloturismo em cidades empreendedoras durante a Feira do Livro, ao final daquela semana que lá estive, tendo um surpreendente público de quase cem pessoas. Ao final, recebi das mãos dos organizadores lembranças regionais e o certificado de conclusão do circuito.
Notadamente, o cicloturista irá notar que o Cascatas e Montanhas é um circuito feito por famílias que escolheram compartilhar seus quintais com os cicloviajantes de todo o país e de fora dele. Diferente de outros circuitos que conhecemos, ele tem ainda muito para oferecer em termos de novos roteiros e empreendimentos geridos pela comunidade, basta querer, buscar capacitação e não parar de promover-se amplamente. É de extrema importância que a comunidade se sinta convocada a participar ativamente desta experiência e assumir sua autoria cotidiana.
Os cenários de sonho deste circuito convocam a comunidade a aceitar seu papel de protagonista deste espaço, não como meros coadjuvantes ou espectadores.
De nossa parte, quando a gente se sente em família, a vontade de partir é a mais incômoda das sensações. O jeito é tratar de voltar ao Circuito Cascatas e Montanhas, inúmeras vezes, tão logo seja possível, porque sabemos que lá estão famílias de braços abertos esperando por nós.
Viva a bicicleta, sempre!
Por Therbio Felipe M. Cezar