Espírito livre: Cicloturismo na América do Sul

Confira como foi a jornada do ciclo viajante Fabiano Bulow que saiu de Serranópolis e viajou um durante ano por vários países latinos.

Sevilha: De onde saiu, até onde foi e quantos dias levou?
Fabiano: Sai de Serranópolis do Iguaçu, pedalei no primeiro dia até Foz do Iguaçu para conhecer e passar uma noite na Casa do Ciclista ACCI. De lá fui à Argentina onde passei o Natal e o ano novo com uma família que já conhecia de outra viajem. De lá segui para o Sul indo sentido Uruguai. Do Uruguai voltei pra Argentina onde segui para Patagônia. Fui até San Carlo de Bariloche. De lá entrei no Chile. Atravessei todo Chile, do sul ao norte no deserto do Atacama. De lá fui para Bolívia. Na Bolívia foi a única vez que fiquei doente na viagem, peguei uma diarreia brava. Da Bolívia fui para o Peru, lá visitei dois atrativos que tanto queria visitar, Machu Picchu e a Laguna 69 na cordilheira Branca. Foi ali que cheguei na altitude máxima de 5100 metros. Segui viagem para o Equador, e depois para Colômbia. Do norte da Colômbia peguei um voo para o meio da Amazônia. Fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, só chega de avião ou barco, viajei de barco até Manaus e de Manaus a Santarém. Depois voltei a pedalar na rodovia transamazônica e depois da BR 163.

Existem muitas maneiras de contar uma cicloviagem, existem pessoas que vão acompanhadas e narram a dificuldade de conviverem juntas outras contam números e altimetria, algumas criam um mundo mágico. O que quero te perguntar é, como essa viagem afetou tua vida? E o que gostaria que todo mundo soubesse?

Essa viagem para mim não era apenas pegar a bicicleta e sair pedalando sem rumo por aí, eu fiquei alguns anos sonhando com ela, me imaginando sozinho no nada, ou em meio à multidão e trânsito. Em meio aos medos e incertezas, tanto sobre a viagem e ao retorno depois dela concluída chegou uma hora que não aguentei mais, pensei que era a hora de realizar meu sonho, o sonho de pedalar pela América do Sul. Posso me autodenominar uma pessoa de coragem, sempre gostei de desafios e aventuras, já tinha feito outras viagens de bicicleta antes, mas nada como a que estava prestes a fazer, sem data certa de partida e muito menos de chegada. O que sempre me motivou a seguir meus sonhos é um pensamento talvez um pouco egoísta ou egocêntrico, é ou você faz o que tem vontade ou vive a vontade dos outros. Nunca tive um emprego dos sonhos, nunca tive um carro do ano e provavelmente nunca me vesti muito bem com roupas de grife, mas quem me conhece sabe que sempre fui o Fabiano que sempre quis ser, essa viagem me mudou ainda mais em relação com isso tudo, a nossa vida é muito curta para pensarmos em primeiro ficar ricos para podermos tirar um tempo para realizar nossos sonhos. Primeiro de tudo é que tempo, dinheiro e saúde dificilmente estarão alinhados ao mesmo tempo, assim acabamos deixando passar oportunidades de sermos felizes por complicar muito as coisas. Falando da minha experiência nessa viagem, sobre o dinheiro: Nunca fui rico financeiramente, trabalhei e economizei dinheiro para comprar meus equipamentos e guardar dinheiro para me manter na estrada por um ano, além disso deixei meu carro como uma garantia caso precisasse em uma emergência. Tempo: nós temos para as coisas que realmente nos interessa, e esse foi o motivo de trancar o curso em uma universidade federal, fechar a empresa de pinturas e abrir mãos das oportunidades que poderiam surgir nesse interim que estaria fora. Saúde: sempre tive, dificilmente fico doente, geralmente é apenas um resfriado que me derruba alguns dias no ano, costumo dizer que remédio para mim é apenas Benegrip. Isso tudo somado a minha coragem fizeram ver uma América do Sul com meus olhos, sentir os aromas, sentir as diferentes temperaturas, sentir os efeitos do ar rarefeito na cordilheira, fez sentir a emoção na hora da despedida de alguma família que me abrigou por dois ou três dias, pessoas que mal tinham para se alimentar, mesmo assim não se negaram a alimentar um estranho. Ainda hoje e creio que será para o resto da vida, as lembranças fazem sorrir, emocionar, fazem querer rever essas pessoas que  acolheram, não é apenas um pouco de água ou comida que elas deram, elas  deram atenção, carinho, afeto, um teto para dormir, um banheiro para tomar banho. O Fabiano que foi aos poucos foi ficando pelo caminho, o que voltou aos poucos foi se construindo. Aquele Fabiano que foi ele não era muito fã de comer comida requentada, o Fabiano que voltou não desperdiça comida, sabe por quê? Por que muitas vezes ele passou fome na estrada, muitas vezes ele comeu arroz de talvez dois ou três dias atrás e foi as melhores refeições que ele fez, o Fabiano que foi nunca teve um guarda roupa cheio, mas o Fabiano que voltou sabe que o que ele realmente precisa cabe dentro dos seus alforjes. Essa viagem deixou muito mais encorajado, eu sei que não existe limites para quem quer alguma coisa, se você realmente quer algo você é capaz de fazer, desde que não faça mal às outras pessoas. É questão de você acreditar, mas quando eu digo você é só você, quando tiver um sonho ou projeto procure não divulgar antes de fazer, a felicidade é ofensiva e vai de acreditar, você não usaria todos os dedos da sua mão para contar quantas pessoas realmente se importam e realmente querem te ver feliz.

De onde surgiu esta ideia brilhante?
Eu acredito que minha paixão por viajar de bicicleta começou com uns 12 ou 14 anos, foi quando ganhei minha primeira bicicleta nova, fui na bicicletaria e esperei montar ela, aí peguei e pedalei entre as cidades de Medianeira e Serranópolis do Iguaçu, cidades onde minha mãe morava é a cidade onde meus avós moravam. Uma distância de cerca de 18 km mas que ninguém acreditava que uma criança teria feito isso sozinho com uma bicicleta. A bicicleta sempre fez parte da minha vida, tenho lembranças de todas ela e nos mais diversos momentos. Na juventude fiquei alguns anos longe da bicicleta, na época sair de carro era mais atrativo e chamava mais a atenção das meninas. Gastos com combustível fizeram voltar para meu antigo amor, a bicicleta, óbvio. Desta vez com uma bicicleta mais moderna, freios a disco, câmbio com 27 velocidades, suspensão que deixava a pedalada bem mais agradável, isso era a ideia na hora de comprar a bicicleta, no mesmo trajeto que fiz quando tinha 14 anos mas agora com 24 anos eu mal podia ficar sentado no selim, o corpo não estava mais acostumado com aqueles movimentos de pedalar e tampouco o peso do corpo apoiado sobre o selim, fiquei dois dias que mal podia andar, não tinha uma parte do meu corpo que não doía, no terceiro dia subi novamente na bicicleta ai a dor já era menor. Aos poucos fui descobrindo estradas rurais da minha cidade e da região, pedalar sozinho em lugares remotos traz medo para algumas pessoas, já para mim sempre me chamou a atenção, sair conhecer lugares que meus olhos ainda não tinham visto, assim comecei com minhas primeiras cicloviagens na região oeste do Paraná. Aos poucos fui aumentando as distâncias e as fronteiras, ou melhor as fronteiras eram apenas um lugar com sombra para descansar, digo isso porquê era comum eu ir para a Argentina nos finais de semana. Na Argentina também foi onde descobri que era com uma bicicleta que queria descobrir a América do Sul, mais precisamente na região de Bariloche, estávamos eu e mais três amigos em um carro e quando passamos por um ciclo turista eu comecei a chorar vendo aquele homem com sua bicicleta de alforjes amarelos, ali me vi fazendo aquilo também. No outro ano, também na Argentina, mas dessa vez no norte argentino, em meio às terras desérticas de San Antônio de Los Cobres novamente vi dois cicloturistas pedalando em meio ao nada, mais uma vez caiu lágrimas dos meus olhos e me perguntava o porquê de eu não fazer aquilo também, me perguntava qual era o sentido da vida se não podemos realizar nossos sonhos. Foi com essa inquietude que o sonho foi tomando forma, foi sendo planejada mentalmente, alguns lugares chave que gostaria de visitar, mas sem uma rota planificada, simplesmente ir, ir e viver.

Quando você se aventura numa viagem selvagem, muitas pessoas querem saber o que mais dificultou o pedal, perrengues…. Passou muitos? Qual os piores?Acredito que por eu ser criado de uma forma diferente, um jeito mais livre que a maioria das pessoas as dificuldades tenham sido menores, quem sabe outra pessoa no meu lugar poderia não ter se saído muito bem na mesma situação, digo isso porque me criei andando na natureza selvagem, tanto é que enquanto meus amigos jogavam futebol eu preferia estar caminhando em meio a mata, acredito que isso tenha ajudado muito na hora de acampar em florestas, beira de estrada ou em alguma construção abandonada. Outra coisa que me ajuda é minha intuição, onde não me sentia bem não ficava por muito tempo, se algo me diz que não é um lugar seguro eu não hesito em sair logo dali. Entre as situações que fiquei com um certo medo foi no sul do Chile quando eu estava viajando com um francês, nós chegamos em uma pequena cidade e pedimos onde poderíamos acampar e nos informaram que um rio passava a cerca de uns 800 metros dali, fomos até lá para passar a noite, não armamos as barracas, apenas esticamos os isolantes térmicos e as bolsas de dormir, cada um dormindo ao lado da sua bicicleta, durante a noite chegou cerca de 10 pessoas ouvindo som alto, bebendo e fumando, chegaram logo com lanternas em nossos olhos, nesse momento pensei que iriam nós roubar. Outro momento estranho foi em meio ao deserto do Atacama, não lembro certo o nome do povoado, só lembro que é mais ou menos a metade da distância entre Calama e Ollagüe, acredito que a cidade mais próxima deveria estar a uns 50 km de distância, não sei se foi o efeito da altitude ou do cansaço que me fizeram ouvir vozes durante a noite, sozinho no meio do nada acordei ouvindo vozes, liguei a lanterna, segurei o facão na mão e as vozes pararam, é difícil explicar, pois são experiências únicas.

Vivamil

Ainda sobre perrengues, o pior momento de todos foi a diarreia que me derrubou na Bolívia, ali fiquei totalmente debilitado, sem forças para comer, beber agua ou para sair comprar papel higiênico “risos”. Fiquei uma semana com uma forte diarreia que me fazia mudar de hospedagem a cada dois dias devido não aguentar o mesmo banheiro, era o dia todo sentado numa privada.

Existiu algum tipo de “iluminação” ou tirou uma grande lição desta viagem?
A grande lição que aprendi é: Acredite nos seus sonhos, ou melhor VIVA SEUS SONHOS. Se você não viver seus sonhos ninguém vai viver eles por você, simplesmente vai chegar um dia que a tampa do seu caixão irá se fechar e ali dentro vai tudo com você, ou você realiza as coisas que quer enquanto está vivo ou caso contrário não irá fazer, você é o único que é capaz de fazer isso, pare de arrumar empecilhos, viva com menos coisas e viva com mais experiências.

Quanto gastava por dia?
Sou péssimo em números e sinceramente não fiz cálculos detalhados, mas acredito que ficou em média de 40 a 45 reais por dia.

Existe um lugar especial nesta grande cicloviagem?
Todas as famílias que me acolheram são especiais e fazem parte da minha história mas o lugar especial é a capital Equatoriana, nunca gostei de cidades grandes e sempre falava que não ia ir para Quito mas eis que o destino me levou para lá, digo isso porque não consegui sacar dinheiro em uma pequena cidade no nada, um lugar incrível de muita natureza e paz, devido a esse problema com meu cartão de crédito me obriguei ir para a capital, cheguei lá com apenas alguns dólares no bolso, sentei em uma praça para comer uma comida típica equatoriana, encebollado, logo depois veio um homem que estava fazendo exercícios falar comigo e em meio a conversa falei sobre meu problemas com o cartão e que estava na procura de um lugar para ficar, o homem me passou o endereço de um amigo seu que recebia ciclistas, fui até ao endereço e fui recebido pelo tal homem, seu nome até então era Carlos Tacuri, mas logo comecei a chamar de Papa Carlitos, digo isso por que ali fiz uma família, Papa Carlitos, e meus irmãos Cicloturistas, Camilo, Octávio e Léo, fiquei um mês vivendo e ajudando em uma bicicletaria. Onde eu não queria ir acabou sendo o lugar mais difícil de me despedir, pessoas boas e de coração puro que me acolheram de braços abertos.

Fale mais destas transformações na tua vida…
Acredito que o que mais mudou em mim foi quanto a alimentação, como falei antes, até você não passar fome você não dá valor a comida, até passar sede você não dá valor a água que tem para beber, sabe essa água gelada que temos na nossa geladeira, pois é isso me levou as lágrimas em uma cidade da Argentina, era quase meio dia, calor de 34°, parei em uma casa para beber água, alcancei a garrafa e quando segurei novamente ela estava gelada, a senhora tinha completado com água gelada, isso pra mim foi melhor que qualquer cerveja, espumante ou outra bebida que custa vários reais, sim a água gelada tem um outro “valor” quando não se tem nada para beber.  Acreditar em você mesmo, você é a única pessoa que sabe o que te faz bem, seu pai, sua mãe, seu namorado, sua namorada, sua esposa, todos eles podem te amar e te querer bem, mas só você sabe o que te faz feliz, caso você ainda não descobriu então procure descobrir!

Existem projetos futuros?
O projeto futuro e atual é ser feliz, mas se tratando de cicloturismo sempre tem alguma coisa em mente, é um estilo de vida e viagem que é quase impossível de não ter projetos de conhecer novos lugares e culturas.

Existem mais pessoas ruins ou boas no planeta?
Como já mencionei não sou bom com números, mas a porcentagem acredito ser mais ou menos assim: 99,9% de pessoas boas e 0,1% de pessoas más, ai que vem o grande problema de se apegar a esse 0,1% que não presta, se limitamos muito por notícias ruins, talvez até gostamos dessas desgraças afinal caso contrário os jornais não teriam audiência, nossos olhos se apegam a imagens de tragédias no nosso feed de redes sociais ou sites de informação, nos autodestruímos com notícias ruins todos os dias, somos apegados a coisas ruins, nas rodas de amigos sempre estamos falando de alguma desgraça, não estou falando para simplesmente taparmos os olhos a assuntos como esses, mas sim não dar tanta ênfase dentro de nós, devemos nos apegar e dar valor as coisas boas que existem.

O que você diria para alguém que sonha fazer algo parecido?
Oque eu diria é: compre alforjes impermeáveis, não é nada agradável ter roupas e comidas molhadas a cada chuva. Leve uma barraca autoportante, aquelas que não precisam estar estaqueadas para ficar de pé, acredite que isso vai te ajudar bastante na hora de dormir em qualquer lugar e ficar livre dos mosquitos. E o principal, se é seu sonho vá, não espere ter a bicicleta a bicicleta dos sonhos, ou ter 40 mil reais na poupança e só assim partir, se é seu sonho simplesmente vá e seja feliz.

Por Antônio Sevilha | Fotos: Fabiano Bulow

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Lobi Ciclotur
Oi, eu sou o LOBi! Estou aqui para aliar natureza e caminhos alternativos para você e sua família descobrirem o mundo do ponto de vista da bicicleta.

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